domingo, 20 de dezembro de 2009

A Estrela Cadente – Completo

A Editora Multifoco editou o conto "A Estrela Cadente" cortando o parágrafo final do texto. Para alguns pouco afetou e para a maioria, tirou todo o lirismo da história fazendo-a ter um final abrupto.
Para quem gostaria de conhecer a versão original, posto-a aqui agora:

A Estrela Cadente



Por que a felicidade chega sem avisar e da mesma maneira nos deixa? Infelizmente, lampejos de tristeza nos marcam mais que os de alegria e é esta história que conto-lhes agora...

Não saberia dizer que parte mais falta em mim. Que ingrediente fora dosado de maneira incorreta, não causando a tão desejada “química” com os outros de meu meio.

Sou uma pessoa considerada “dispensável”. Daquelas que ninguém sente a falta caso você não vá à uma festa. Que chega a atrair amigos, mas logo eles parecem se enjoar e sem breve aviso, simplesmente te abandonam.

Não! Não sou uma pessoa feia, mas também não me acho encantadora. Creio faltar aquele ingrediente para o bolo, a cereja para dar charme, seja ela um penteado, ou mesmo a maneira correta de se vestir.

Talvez o fato de ter passado toda a minha infância na zona rural tenha-me feito uma genuína cabocla, que não conseguiu se adaptar aos novos amigos da cidade e, por mais que me esforçasse, jamais consegui tornar-me elegante mesmo comprando roupas sofisticadas, que pareciam nunca combinar com meu corpo.


Evitando me tornar um exemplo real de como a realidade imita a ficção e não trazer à vida a personagem ridicularizada por amigos nos filmes americanos, voltei às origens e hoje vivo isolada aqui, no sítio que era da família.

Confesso que já tive meus amores e desejos, mas nenhum deles correspondeu. Entreguei inclusive minha virgindade a alguém que pouco caso fez assim que a conquistou mesmo sendo após muita insistência.

Acho que o problema não são os outros, mas talvez eu mesma, ou até mesmo minha existência. Sendo assim, isolo-me neste meu pequeno mundo e em plena era espacial, evito ligar a televisão, ou qualquer meio de comunicação com o mundo externo, para evitar possíveis arrependimentos de uma vida há muito tempo deixada para trás. Assim sendo, minha melhor companhia são minhas criações e plantas.


Todas as noites, como em um ritual usado por milhões de pessoas no horário nobre em frente seus aparelhos de TV, sento-me sob o pé de seringuela próximo ao lago e de lá fico contemplando o céu, pois nenhuma tela digital por maior e moderna que seja, conseguirá fazer surtir o efeito do espaço mestre.

Sei que lá em cima a batalha continua, sendo perceptível a olho nu apenas durante a noite e quando estes conflitos ocorrem muito perto, o que não acontece sempre.


O Tratado da Nova Fronteira que substituiu o antigo de Genebra, nos mantém seguros, impedindo-os de chegarem mais perto e evitando assim envolver ou provocar baixas em civis. Mas mesmo longe às vezes consigo ver o que poderia ser alguma explosão, que embora lá de cima possam ser assustadoras, daqui parecem mais pequenos flashes, como de um show pirotécnico.


Há uma antiga lenda que diz que, se fecharmos os olhos ao depararmos com uma estrela cadente e fazer um desejo, ele poderia se realizar. É estranha a maneira que o mundo me exclui de seu meio, pois tenho que desejar primeiro ver uma estrela, para depois poder formatar um desejo e, infelizmente, esta dádiva nunca me foi concedida.

Dizem que quando desejamos muito algo, o universo conspira em nosso favor. E talvez haja um fundo de verdade nisso, pois de tanto desejar ver um corpo celeste em cadência, eis que ele surge tão próximo, que nenhum olho humano pode presenciar em toda história.


Sei que as estrelas cadentes se desintegram ao passarem para a atmosfera, mas a minha em especial não foi detida por nossa camada protetora. E nem veio da radiante como costuma ser, mas de um dos pequenos focos de explosões que consegui ver mesmo estando a olho nu, riscando todo o céu e caindo no lago bem próximo de mim.

Talvez a maneira que chocou-se com a água, tenha aliviado seu impacto – vindo do lado oposto em que eu estava, atravessando o lago por completo, só parando há alguns metros já na parte rasa – e o que tive tão perto, não foi um pedaço de meteorito, mas sim uma espécie de nave espacial, que o piloto teve a perícia de fazer uma curva ascendente antes de se chocar com a água e, apesar dos muitos destroços incandescentes, a parte principal ou melhor, o cockpit ainda permanecia intacto, sofrendo poucas avarias.


Meu instinto foi o mesmo que vários seres humanos fariam: Tentar retirar o piloto do cockpit antes que ocorresse alguma explosão. Não quis arriscar mesmo sabendo que o sistema de segurança refrigeraria as partes que pudessem sofrer combustão e, mesmo sem saber de início se ele era um dos aliados, lá estava eu usando toda a força que havia adquirido cuidando da lavoura, para tirar o corpo desacordo de dentro de sua nave.

Sim. Era uma “Defênder”. Daquelas usadas para retardar os ataques inimigos e facilitar a fuga dos aliados. Mas parece que nosso amigo aqui não conseguiu sucesso em sua própria fuga. O Tratado da Nova Fronteira não permite que pilotos persigam ou alvejem o inimigo em solo após sua nave ser abatida e talvez por isso, praticamente ninguém veio atrás dele quando caiu, nem mesmo aliados. Deviam ter problemas maiores para enfrentar lá em cima.


Assim sem ser incomodada, consegui com muito esforço levar o piloto para dentro de casa e o acomodei em minha cama. Parecia em coma, mas respirava sem problemas.

Em seu pescoço, havia um colar de guerra, usado sempre em combate e servem para identificação em caso de mutilações. O seu possuía uma luz piscante, que parecia emitir algum sinal. Fiquei com medo que os inimigos também rastreassem este sinal e viessem em sua captura e achei por melhor desativá-lo. Sei que na hora que acordasse, ele saberia melhor o que fazer. Ao tirar sua roupa, fiquei impressionada pela beleza do que estava diante de mim.

O piloto era alto, de corpo robusto e bem torneado, mas com cabelos loiros e rosto delicado, lembrando-se a um Deus grego. Era belo, uma beleza que jamais teria diante de mim. Daqueles que fora feito para as garotas mais abastadas. O tipo de gente que o Pai Maior pareceu amar mais que as outras e lhe dar os melhores atributos físicos.


Cuidei com um amor materno e felino de seus ferimentos e limpei seu corpo com pano molhado em água quente, pois não possuía força suficiente para locomovê-lo até a área de banho. Durante o resto da noite, ele parecia sofrer convulsões e ter pesadelos, mas jamais abriu os olhos. Fiquei acordada até o raiar do dia esperando que alguma equipe de resgate viesse buscá-lo, o que não ocorreu. Durante este tempo, não sabia se sentia pena pelo seu infortúnio, ou admiração por sua beleza.

Estava por perto quando ele abriu os olhos. Sei que Deus nos tira do corpo frações de segundos antes de algum desastre e em alguns casos nos devolve depois, evitando assim algum trauma. Mas neste caso, sua amnésia parecia ser muito maior e o que vi mais parecia uma criança recém nascida, ou animal qualquer. Que confia sua vida e pega afeição pelo primeiro ser que vê na frente. E como uma criança precisando de carinho, ele apenas me abraçou e encostou sua cabeça em meu peito.


Esperei por instantes que ele falasse, mas ele parecia não saber se comunicar. Tomei-o pelas mãos e o ajudei a se vestir. Em seguida levei-o até próximo à sua nave, mas ele parecia não só não reconhecê-la, mas era totalmente indiferente a ela. Sequer parecia saber o que era aquele objeto.

Tentando auxiliar em sua lembrança, retirei da nave alguns objetos pessoais e os apresentei, mas ele os tomava em mãos e os deixava cair. Era como se não significassem nada em sua vida, ao contrário, o guerreiro parecia mais um ser dependente de minha pessoa, como um filhote por seu genitor e assim me seguia por onde quer que fosse, sempre procurando segurar uma de minhas mãos.


Confesso que jamais recebi tal forma de carinho e isso me fez cometer uma espécie de delito: O de não acionar o Alinhador de Neurônios, que estava entre seus objetos pessoais e que gera sinais que alinham e tentam de certa forma “reiniciar” a memória semântica. Isso poderia incentivar a recuperação de toda ou boa parte de sua memória, mas tenho medo destes sistemas artificiais e dos danos celebrais que possam causar. Preferí de certa forma, incentivar suas lembranças com ações e lhe mostrando mais objetos pessoais, como fotografias encontradas no cockpit de sua nave.

Os dias passavam e ele parecia indiferente. Parecia não se importar com sua outrora vida, ou parentes expostos em tais gravuras. Preocupava-se apenas em ficar ao meu lado, me seguindo o dia todo e ajudando nas tarefas diárias.Até mesmo na hora de comer, abandonava seu prato e só se alimentava do que estivesse no meu.


Comecei a criar o guerreiro como um filho, embora o desejasse como marido. Sabia que a recuperação de sua memória seria questão de tempo e ele logo me deixaria, mas o mutuo sentimento de amor e afeto parecia apenas aumentar com o passar dos dias.

Costurei sua farda e fui até a cidade comprar mais algumas roupas. O tempo todo ele se postava ao meu lado e sempre de mãos dadas. Desde o dia em que chegou, não pronunciou uma só palavra e cheguei a argumentar com uma vendedora que ele (o meu marido) sofria de problemas mentais e não sabia se comunicar.

Pela primeira vez na vida, enquanto caminhava pelas ruas do centro, pude sentir orgulho ao ver outras garotas admirarem meu homem e saber que ele queria apenas estar ao meu lado.


De nada adiantou a educação moral com que fui criada dentro do berço familiar. Evitei confesso, dormir ao seu lado, pois o desejava. Mas sempre que o deixava sozinho na cama e ia me deitar no sofá, acordava com ele tentando se postar ao meu lado.

Houve uma vez em que ele dormiu ao solo apenas para ficar do meu lado e isso me comoveu. Por saber que se tratava de um adulto, resolvi dividir com ele a mesma cama, mas evitei ao máximo tocá-lo. As sempre que me virava para o canto, ele me abraçava por trás.

Numa dessas noites, senti seu membro rígido encostando-se a mim e a excitação dominou minha parte pensante. Após várias tentativas em vão de pegar no sono, pus-me sobre ele e o fiz me penetrar.


Confesso que nunca fiquei tão excitada em minha vida, tão pouco senti tanto prazer a cada vez que esfregava meu corpo com seu. Mas como um garoto que não sabia o que estava fazendo, tive que induzi-lo com minhas mãos a tocar meu seio.

Ao acordar no dia seguinte, não sabia se sentia vergonha ou alegria pela noite anterior. Sentei-me na cama e coloquei as mãos no rosto e a primeira coisa que ele fez ao acordar, foi me abraçar. Agora eu possuía um filho e marido...

Nos amamos todas as noites a seguir e também durante o dia. A vida isolada permitia de certa forma que não sofresse qualquer forma de constrangimento, quando ele – sim, agora ele – me procurava mesmo durante as tarefas.

A alegria de ter alguém por perto (filho e marido) que realmente me amava me trouxe de volta a vida. Assim sempre procurava exibir-lhe e ensinar várias coisas, desde os pássaros até manusear alguns instrumentos da agricultura doméstica. Sempre fora dedicado em aprender e só parava com uma tarefa quando eu ordenasse.


O fato de querer voltar ao meio da civilização fez com que cometesse meu maior erro – ou acerto.


Após um dia cansativo e de tarefas árduas, comecei a ver televisão novamente, sempre lhe mostrando os desenhos e atores de dramatização. Mas fora na hora do noticiário, que senti um frio na espinha e minhas pernas vacilaram.

Numa das reportagens, uma mulher com duas crianças implorava por notícias de um piloto, que parecia ter desaparecido em combate. Que era um piloto de Defender, incumbido de dar proteção aos que precisavam bater em retirada, mas que parecia ter sido abatido em sua nobre missão.

Pelo nível de altura do teatro de ações, se sua nave tivesse caído, poderia estar em qualquer estado ou país latino, mas não possuíam notícias porque seu colar sinalizador havia deixado de operar.

Preparavam um enterro simbólico, com todas as honrarias, mas a mulher parecia não aceitar, pois sentia que o marido estava vivo e acreditava que cedo ou tarde, ele iria voltar ao lar.

Reconheci a mulher e as crianças, eram as mesmas das fotografias encontradas na nave. Sua esposa e filhos queriam seu ente querido de volta...

Meu parceiro assistiu as cenas com apatia. Não existia qualquer vestígio ali de que um dia fizera parte daquela família e vendo-o assim com aquela indiferença, pude notar a injustiça que estava cometendo.


Desliguei a TV e me deitei com ele evitando as lágrimas. Assim que ele adormeceu, fui para fora e sentei-me no lugar onde o tinha visto pela primeira vez, em baixo do pé de seringuela.

Olhei para o céu, limpo e estrelado. Não parecia haver mais batalhas, aliás, estive tão entretida com ele nos últimos dias, que nem ligava mais em contemplar o céu.


Por que o Pai Maior age assim com a gente? Por que para a minha felicidade, outra pessoa semelhante teria que sofrer?

Pai o senhor é injusto! Deste-me algo e agora me tiras quando mais preciso dele? Tomaste-me sem compaixão e de uma só vez o esposo e filho, as duas piores perdas que uma mulher pode suportar... Por que deste-me uma estrela cadente, mesmo sabendo que ela nunca seria minha de verdade?

E naquela noite eu chorei. Chorei por minha vida e por todos que conheci. Por não ter tido um amor de verdade e estar de certa forma tomando o amor de alguém. Porque Deus me fez para isso: Viver às margens, servir aos outros, os ver serem felizes e não poder compartilhar desta felicidade...

Sempre que as lágrimas cessavam, a lembrança de minha estrela, que agora seria ascendente, fazia brotar mais e o vazio de minha alma sufocava meus sentimentos, os sugando como um buraco negro.


Quisera eu estar dentro daquela nave quando caiu. Para morrer ou então como minha estrela, apagar da mente todo um passado de frustrações amorosas.

Quando glândulas lacrimais pareciam não possuir mais emoções para exporem, fui para casa e o contemplei dormindo pela última vez. Aproveitando seu sono pesado, devido a exaustão de um dia de trabalho, fui até a estante e peguei o Alinhador de Neurônios e o acionei. Uma pequena luz começou a piscar e o coloquei no criado mudo, do seu lado da cama com a pequena lâmpada apontada em sua direção.

Entrei sob o lençol e fiquei de costas para ele. Mesmo estando dormindo, pude notá-lo se “arrastando” na cama e me envolvendo com um de seus braços.

Por causa da tristeza e das lágrimas, custei a pegar no sono, o que fez com que no dia seguinte, acordasse mais tarde. Nquele instante, ao meu lado minha estrela postava-se em pé, ajustando ao corpo, a farda que lhe havia costurado. Olhou-me com indiferença, acionou o colar em seu pescoço e foi para fora.


Fiquei alguns por segundos sentada na cama, sentindo um misto de vergonha e tristeza, até tomar coragem de ir atrás dele.

De costas para mim ele falou, como se quisesse evitar minha aproximação:

– Por ter de certa forma salvo a minha vida e cuidado de mim, não relatarei o abuso sexual...

Voltei para dentro e me joguei na cama chorando. Horas depois ouvi sons fortes de turbinas se aproximarem. Saí e vi várias naves aterrissando em quintal e vários militares descerem em suas plataformas.

Um homem, que parecia ser o superior dos demais veio ao seu encontro, prestou-lhe continência e lhe deu um breve abraço.


Enquanto as outras naves decolavam, este homem veio até mim:


– Você é um orgulho para a nossa espécie! E por pessoas como você que ainda acreditamos nesta batalha! Receberá suas honrarias...


– Obrigada... Prefiro não receber... – dei-lhe as costas evitando exibir-lhe a lágrima deslizava em meu rosto –... prefiro ficar sozinha por aqui como sempre foi...


Ouvi o som das turbinas se acelerando e a voz do comandante ao entrar em sua nave:


– Heróis anônimos... São desses que o mundo precisa...


E assim como veio, minha estrela me deixou. Destrui minha TV, pois não queria ver a notícia dele voltando ao lar e jurei nunca mais me entreter com qualquer outro meio de comunicação.

A todos assumo este meu crime de cárcere privado e abuso sexual, porém deixo este relato de tristeza, de um sonho que acabou antes mesmo de começar...

Vá com Deus meu anjo celeste! Que Ele o guie e que jamais se volte a ser uma estrela cadente! Vá proteger quem mais precisa de você!

 
Eu guardo um pouquinho de você aqui dentro de mim...

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Solarium 2 – Contos de Ficção Científica



A editora Multifoco lança em primeira mão a seqüência de sua Antologia com o tema Ficção Científica.
Solarium 2 chega com melhorias cruciais em relação a primeira, com acréscimo de elementos que a torna mais atraente visualmente, como ilustrações criadas por James Fox; e esteticamente como a própria capa.
Dos autores que participaram da primeira edição, Emanoel Ferreira, Frodo Oliveira, José Geraldo Gouvêa, Humberto Amaral e Ronaldo Luiz Souza garantiram presença. Completam o time Alex Lopes, Bia machado, Bruno Borges, Cássio Michelon, Cátia Cernov, Daniel Lima, Duda Falcão, Fillipe Jardim, Frank Bacural, Henrique Weizenmann, Igor Silva, J.Fox e Misael Archanjo, J.Miguel, Jorge Eduardo Magalhães, Lauro Wink, Luiz de Souza, Luiz Mendes Jr, Matheus A. Quinan e Rubem Cabral.

Além da evolução visual, os textos também estão mais "polidos" e a apresentação da biografia de seus autores ao final de seus respectivos contos foi uma boa sacada, pois dá ao leitor um canal direto com o autor sem precisar mudar a página.



Solarium 2 mostra mais uma etapa da pioneira e exclusiva iniciativa da Editora Multifoco em investir no talento nacional. Alguns desses autores já possuem livros solos publicados e o reconhecimento será questão de tempo. Mais uma oportunidade de conhecer o trabalho dos novos autores do Brasil, neste caso ambientado no gênero Ficção Científica, que tanto carece de novo fôlego no âmbito nacional.



Quem quiser conferir mais este trabalho, o site da editora é http://www.editoramultifoco.com.br/catalogo2.asp?lv=186 direto ao livro.

Para conhecer o trabalho da editora, visite http://www.editoramultifoco.com.br/index.asp

Comunidade Solarium no Orkut, um canal direto com seus autores:

http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=74823305

A Ficção Científica é o futuro!

Nos vemos lá!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

É o fim cara!

Trecho de "As Crônicas de Valdo"

Pobre Igor!... Também, quem mandou ir trabalhar logo com Pedroso – o Ascoso? Contudo sua lamúria iria deixar de ser um jargão pessoal para se tornar um bordão profissional.
Bastava algo não ocorrer da maneira esperada para a sirene melancólica soar partindo o coração mais caridoso:
– O pagamento veio pouco...
– É o fim cara!...
– Teremos que trabalhar no feriado...
– É o fim cara!...
– O frio está de matar...
– É o fim cara!...
Fim de festa, de feira, de carreira, não importava. Pedroso, o ascoso tornaria o dia do pobre Igor o pior a cada jornada. Seu talento nato viria dos primórdios da infância, desde inocentes retiradas de tatu do nariz para colar sob a carteira, até roçar o traseiro de mulheres em ônibus lotados na adolescência.
Apesar de a fase adulta lhe proporcionar novas experiências, ainda guarda velhos hábitos em nome da tradição. Então caro leitor, não se surpreenda se o vir por aí ainda tirando tatu, agora com nova ferramenta – a unha do dedo mínimo, que deixa crescer até alcançar o anular, geralmente em rodas de bar onde seu assunto predileto são os dotes de esposas alheias.
Execrável! Rabeira da humanidade. O tempo passa, seu ego fica.
Exclua-se Pedroso. Jamais o Ascoso.

Na era digital, seria famoso em redes virtuais por filmar genitálias femininas com aparelho celular oculto em locais de grande fluxo para exibir para semblantes em repulsa. Na vida real, sua miopia mental o impede de reconhecer o avanço da idade, e o excesso de botox mental não deixou espaço para a sabedoria, achando-se galanteador nível adolescente e sufocando de aversão as que abandonaram a fase colorida da vida.
A beleza do brinco foi oculta pelas rugas e os cílios grisalhos que lhe saltam pelas grutas nasais, impedem-lhe o olfato, sendo quase obrigado a encostar o órgão em seu alvo.
Alimentar-se ao seu lado era uma experiência inesquecível, de frente antológica.
No café, era o pingado que se misturava ao bigode, no almoço era sua mandíbula mastigando com a boca aberta – girando em sentido horário e sua ponte móvel em outro.
Tornou-se especialista em se aproximar das pessoas na hora das refeições, pois todos queriam sentar-se ao seu lado, evitando tornarem-se expectadores de sua ponte dançando brake misturada a pasta de arroz.
Memorável sua procura dentro da cumbuca de feijão, após queda acidental e feliz sua esposa que durante um cochilo ao sofá, a colocava de volta em sua boca.
Agora formava uma dupla de sucesso com Igor. Sucesso desses que muda a vida do astro e o torna infeliz. O dinheiro não é tudo, nem mesmo as metas de vendas. Mas sua ausência ao fim de um dia de trabalho costuma provocar excessos de fúria em superiores:
– Foi mal de novo Igor?
– É o fim cara!...
– Cadê o ascoso?
– Está lá sentado no colo do homem...
Ou o sinal de falta de perspectivas:
– Desanimado Igor?
– É o fim cara!...
– O que foi desta vez?
– A cada cliente é um café e três cigarros. E sou eu quem tem a obrigação de limpar o carro.
De torcicolo indiagnosticável, incapaz de apreciar a beleza feminina de relance, tendo de se postar sobre elas.
Sua rédea eqüina com tapa de mula, o impede de ver sua crina, mas não a cauda alheia. De humor controverso, acha graça onde não há graça e é arisca o suficiente para açoitar em coice os menos avisados.
Um breve e singelo retrato de alguém que insiste em ser presente em alguém que deveria emigrar do passado.
O superior chama, Igor desistiu da vida e não mais servirá a empresa.
Eu serei seu substituto...
É o fim cara!...




trecho de "As Crônicas de Valdo"